O triste projeto de um povo que, fingindo ignorar que a natureza humana é decaída pelo pecado original, vive como se Deus não existisse.
Em sua obra para destruir o “organismo misterioso de Cristo”, o inimigo tem querido, nas palavras do Papa Pio XII, “a natureza sem a graça” [1].
De fato, antes mesmo da criação do homem, já se havia manifestado a soberba de Satanás, que queria ser igual a Deus por suas próprias forças. É claro que o demônio não procurava ser como Deus “por equiparação”, isto é, transmutando-se na natureza divina. Ele “sabia, por conhecimento natural, ser isso impossível”, explica Santo Tomás. Porém, ele queria ter “como fim último a semelhança com Deus, que é dom da graça, (...) pela virtude da sua natureza, e não pelo auxílio divino, segundo a disposição de Deus” [2]. Citando Santo Anselmo, resume o Aquinate que o demônio desejou aquilo que obteria se perseverasse.
É o próprio Tomás quem explica em que sentido o desejo de assemelhar-se a Deus é pecaminoso. Porque se é verdade que o diabo caiu por querer ser como Ele, também é verdade que o próprio Senhor ordenou: “Santificai-vos e sede santos, porque eu sou santo” [3]; e repetiu, pela boca do Verbo encarnado: “Sede, portanto, perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito” [4]. Ora,
“quem neste sentido deseja ser semelhante a Deus não peca, pois, deseja alcançar a semelhança com Deus na ordem devida, a saber, enquanto tem essa semelhança recebida de Deus. Se, porém, desejasse ser semelhante a Deus por justiça, como por virtude própria e não pela virtude de Deus, pecaria.” [5]
Foi deste último modo – “por justiça, como por virtude própria” – que o demônio se quis assemelhar a Deus. E para esse mesmo caminho de morte ele seduziu a humanidade: “No dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus” [6]. Eva, atraída pela aparência do fruto e pelas palavras do tentador, “colheu o fruto”, arrebatando-o com violência. A humanidade, feita à imagem e semelhança de Deus, acabava por imitar o diabo, tentando dominar, à força, aquilo que se deveria receber como um dom gratuito do Criador.
Aparentemente, até esta parte da história, o projeto do inimigo de edificar “a natureza sem a graça” tinha alcançado grande sucesso.
Mas, “se pelo pecado de um só toda a multidão humana foi ferida de morte, muito mais copiosamente se derramou, sobre a mesma multidão, a graça de Deus, concedida na graça de um só homem, Jesus Cristo” [7]. O Verbo, existindo em condição divina, “não se apegou ao ser igual a Deus”. Nesse trecho da Carta aos Filipenses, São Paulo usa a palavra grega “ἁρπαγμὸν” (lê-se: harpagmón), apresentando um contraste com a atitude dos primeiros pais: enquanto Eva se quis apropriar indevidamente da divindade, o próprio Deus se rebaixou à nossa humanidade, “assumindo a forma de escravo”, humilhando-se e “fazendo-se obediente até à morte – e morte de cruz!” [8]. Tudo isso para conceder-nos a Sua filiação divina: “Por natureza só há um Filho de Deus, que, por sua bondade, se fez por nós filho do homem, a fim de que, filhos do homem por natureza, por sua mediação nos tornássemos filhos de Deus por graça” [9].
Se, por um lado, é grande a misericórdia de Deus, por outro, é uma constante na história a tentação de abandoná-Lo e “roubar” o tesouro sobrenatural. A heresia pelagiana, ainda nos primeiros séculos da Igreja, colocou inúmeras pessoas no caminho de uma terrível torre de Babel. Corria-se em busca do Céu, mas se buscava alcançá-lo por esforços puramente humanos.
Hoje, tragicamente, o Céu não é a meta de quase ninguém. Um pouco de sucesso profissional, mais um punhado de prazeres passageiros e uma casa confortável na praia, são o medíocre projeto do homem deste século, que desconhece o significado de “graça”, “pecado” ou das mais elementares verdades da fé. Realidade triste que, infelizmente, é passada também aos mais jovens. Está praticamente consolidada entre nós uma educação naturalista, permissiva e liberal, pela qual o ser humano não passaria de um “bom selvagem” e quaisquer atos humanos poderiam ser aceitáveis, desde que acomodados ao terreno já vilipendiado da consciência.
“A natureza sem a graça” é o triste projeto de Satanás – e de um povo que, fingindo ignorar que a natureza humana é decaída pelo pecado original, vive como se Deus não existisse.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
- Pio XII, Discorso agli uomini di Azione Cattolica, 12 ottobre 1952
- Suma Teológica, I, q. 63, a. 3
- Lv 11, 44
- Mt 5, 48
- Suma Teológica, I, q. 63, a. 3
- Gn 3, 5
- Rm 5, 15
- Fl 2, 6-8
- Santo Agostinho, De Civitate Dei, XXI, 15
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