terça-feira, 22 de julho de 2014

A NATUREZA SEM A GRAÇA

O triste projeto de um povo que, fingindo ignorar que a natureza humana é decaída pelo pecado original, vive como se Deus não existisse.
Em sua obra para destruir o “organismo misterioso de Cristo”, o inimigo tem querido, nas palavras do Papa Pio XII, “a natureza sem a graça” [1].
De fato, antes mesmo da criação do homem, já se havia manifestado a soberba de Satanás, que queria ser igual a Deus por suas próprias forças. É claro que o demônio não procurava ser como Deus “por equiparação”, isto é, transmutando-se na natureza divina. Ele “sabia, por conhecimento natural, ser isso impossível”, explica Santo Tomás. Porém, ele queria ter “como fim último a semelhança com Deus, que é dom da graça, (...) pela virtude da sua natureza, e não pelo auxílio divino, segundo a disposição de Deus” [2]. Citando Santo Anselmo, resume o Aquinate que o demônio desejou aquilo que obteria se perseverasse.
É o próprio Tomás quem explica em que sentido o desejo de assemelhar-se a Deus é pecaminoso. Porque se é verdade que o diabo caiu por querer ser como Ele, também é verdade que o próprio Senhor ordenou: “Santificai-vos e sede santos, porque eu sou santo” [3]; e repetiu, pela boca do Verbo encarnado: “Sede, portanto, perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito” [4]. Ora,
“quem neste sentido deseja ser semelhante a Deus não peca, pois, deseja alcançar a semelhança com Deus na ordem devida, a saber, enquanto tem essa semelhança recebida de Deus. Se, porém, desejasse ser semelhante a Deus por justiça, como por virtude própria e não pela virtude de Deus, pecaria.” [5]
Foi deste último modo – “por justiça, como por virtude própria” – que o demônio se quis assemelhar a Deus. E para esse mesmo caminho de morte ele seduziu a humanidade: “No dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus” [6]. Eva, atraída pela aparência do fruto e pelas palavras do tentador, “colheu o fruto”, arrebatando-o com violência. A humanidade, feita à imagem e semelhança de Deus, acabava por imitar o diabo, tentando dominar, à força, aquilo que se deveria receber como um dom gratuito do Criador.
Aparentemente, até esta parte da história, o projeto do inimigo de edificar “a natureza sem a graça” tinha alcançado grande sucesso.
Mas, “se pelo pecado de um só toda a multidão humana foi ferida de morte, muito mais copiosamente se derramou, sobre a mesma multidão, a graça de Deus, concedida na graça de um só homem, Jesus Cristo” [7]. O Verbo, existindo em condição divina, “não se apegou ao ser igual a Deus”. Nesse trecho da Carta aos Filipenses, São Paulo usa a palavra grega “ἁρπαγμὸν” (lê-se: harpagmón), apresentando um contraste com a atitude dos primeiros pais: enquanto Eva se quis apropriar indevidamente da divindade, o próprio Deus se rebaixou à nossa humanidade, “assumindo a forma de escravo”, humilhando-se e “fazendo-se obediente até à morte – e morte de cruz!” [8]. Tudo isso para conceder-nos a Sua filiação divina: “Por natureza só há um Filho de Deus, que, por sua bondade, se fez por nós filho do homem, a fim de que, filhos do homem por natureza, por sua mediação nos tornássemos filhos de Deus por graça” [9].
Se, por um lado, é grande a misericórdia de Deus, por outro, é uma constante na história a tentação de abandoná-Lo e “roubar” o tesouro sobrenatural. A heresia pelagiana, ainda nos primeiros séculos da Igreja, colocou inúmeras pessoas no caminho de uma terrível torre de Babel. Corria-se em busca do Céu, mas se buscava alcançá-lo por esforços puramente humanos.
Hoje, tragicamente, o Céu não é a meta de quase ninguém. Um pouco de sucesso profissional, mais um punhado de prazeres passageiros e uma casa confortável na praia, são o medíocre projeto do homem deste século, que desconhece o significado de “graça”, “pecado” ou das mais elementares verdades da fé. Realidade triste que, infelizmente, é passada também aos mais jovens. Está praticamente consolidada entre nós uma educação naturalista, permissiva e liberal, pela qual o ser humano não passaria de um “bom selvagem” e quaisquer atos humanos poderiam ser aceitáveis, desde que acomodados ao terreno já vilipendiado da consciência.
“A natureza sem a graça” é o triste projeto de Satanás – e de um povo que, fingindo ignorar que a natureza humana é decaída pelo pecado original, vive como se Deus não existisse.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
  1. Pio XII, Discorso agli uomini di Azione Cattolica, 12 ottobre 1952
  2. Suma Teológica, I, q. 63, a. 3
  3. Lv 11, 44
  4. Mt 5, 48
  5. Suma Teológica, I, q. 63, a. 3
  6. Gn 3, 5
  7. Rm 5, 15
  8. Fl 2, 6-8
  9. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XXI, 15

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