"Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade." (Deuteronômio 16:19 )
Por Julia Affonso
Era madrugada de 12 de fevereiro de 2011, na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, quando uma caminhonete preta foi parada na Operação Lei Seca. A agente de trânsito Luciana Tamburini não tinha visto o carro ser abordado. Ela participava de mais uma blitz rotineira em três anos. De dentro da barraca, ela viu um reboquista entrar no local dizendo a ela que precisava levar um carro, mas o dono não deixava. O proprietário do veículo era João Carlos de Souza Correa, juiz de Direito. O carro não tinha placas e documentos e o juiz estava sem a carteira de motorista.
Segundo ela, o magistrado achou que ela estivesse sendo abusada na abordagem e disse que ela deveria ser levada para a delegacia. Neste momento, a agente conta que disse: “Ele quer, mas não é Deus.” Nesta semana, a frase foi repetida milhares de vezes nas redes sociais e virou hashtag no Twitter: #juiznaoedeus. Luciana Tamburini. Foto: Fábio Motta/Estadão Luciana Tamburini. Foto: Fábio Motta/Estadão A confusão saiu da barraca da Lei Seca e terminou na delegacia. Dias depois, segundo Luciana, o juiz foi ao Detran e entrou com uma representação interna contra ela. Sentindo-se injustiçada, ela recorreu à Justiça comum e o processou por danos morais. Mais de dois anos depois, ela perdeu a ação e foi condenada a pagar R$ 10 mil a ele.
Luciana recorreu e perdeu mais uma vez. No último dia 22 de outubro, o desembargador José Carlos Paes, relator do caso no Tribunal de Justiça do Rio, decidiu que ela deveria pagar R$ 5 mil ao juiz. Indignados com a decisão judicial, internautas criaram uma vaquinha online para arrecadar o valor da indenização da agente, que recebe cerca de R$ 3.7 mil mensais de salário. Em quatro dias, a quantia passou de R$ 20 mil. Luciana vai recorrer da decisão. Se ganhar, promete doar a quantia toda para uma instituição de caridade. O juiz não quis se pronunciar sobre o caso. Luciana falou. A gaúcha de nascimento e carioca de coração contou o que se passou naquela noite e o que espera do caso daqui para a frente.
Ex-atleta de tênis, ela passou 5 anos morando nos EUA, onde se formou em Economia. Voltou ao Brasil e revalidou o diploma estudando Administração. Depois do episódio na blitz da Lei Seca, a agente passou a trabalhar internamente. Hoje, está licenciada do Detran e aguarda ser chamada em um concurso para escrivã da Polícia Federal. Carro do juiz sendo lacrado na blitz da Lei Seca, em fevereiro de 2011.
"Faze-me justiça, ó Deus, e defende a minha causa contra um povo infiel; livra-me dos homens traidores e perversos." (Salmos 43:1)
ESTADÃO: O que aconteceu naquela noite?
LUCIANA TAMBURINI: Quando eu cheguei para conversar, ele já tinha dito que era juiz, mas não tinha se identificado para mim. Eu disse: ‘Senhor, o seu carro vai ser removido, porque está sem registro’. Ele falou que não sabia da existência dessa lei. Eu expliquei que ninguém pode alegar desconhecimento da lei para se beneficiar dela. A lei existe e eu vou ter que aplicar. Nesse momento, ele afirmou que eu estava sendo abusada. Eu disse que não. Ele perguntou se eu não achava a lei abusiva. Eu disse que eu não era legisladora.
ESTADÃO: Para onde você foi?
LUCIANA TAMBURINI: O coordenador falou comigo que aquilo estava gerando muita confusão e pediu para a gente resolver tudo na delegacia. Fiquei lá até as 10h. Saí e fui direto para casa. Estava extremamente cansada, física e emocionalmente. Tomei um banho, desliguei o celular e tentei dormir. Recebi um telefonema do Detran e do meu chefe pedindo para enviar um relatório sobre o ocorrido na operação da noite anterior.
ESTADÃO: De quem você recebeu solidariedade nos primeiros dias?
LUCIANA TAMBURINI: Minha família sempre esteve do meu lado, assim como os colegas de trabalho. Recebi ligações da minha chefia, do coordenador da operação Lei Seca, que me ajudou muito e inclusive foi me encontrar na delegacia. Ouvi de outras pessoas que deveria ter liberado o magistrado para evitar maiores problemas. Comentários que entristecem, uma vez que muitas das vezes deixamos de buscar os nossos direitos por medo e descrédito no Judiciário.
ESTADÃO: O que muda na sua vida depois desse episódio?
LUCIANA TAMBURINI: Sempre procurei agir correta e dignamente, mas com certeza cresce o sentimento de injustiça, de insatisfação pelo que estamos vivenciando atualmente no Brasil. Cresce a vontade de fazer a diferença, nem que seja dentro de casa, a vontade de ver o País mudar, evoluir. Acho que cresce a necessidade de ver o nosso Pais democrático sendo governado por pessoas honestas e idôneas.
ESTADÃO: Seu caso pode influenciar as pessoas a fazerem a coisa certa?
LUCIANA TAMBURINI: Com certeza. A mudança é essencial e necessária. Essa comoção social só demonstra isso. Todo querem ver um Brasil melhor, diferente, justo. A população é carente de informação. Com as redes sociais, a mídia, hoje temos muito mais recursos e informações. Sabemos que temos direitos e deveres perante a sociedade. Não temos mais medo.
ESTADÃO: Depois da repercussão desses dias, quem ligou se solidarizando? O juiz entrou em contato?
LUCIANA TAMBURINI: Várias pessoas ligaram apoiando, desde amigos, colegas de trabalho, parentes, desconhecidos, imprensa. O apoio está vindo de todas as partes. ESTADÃO: Gostaria que ele pedisse desculpas a você? LUCIANA TAMBURINI: Acho que ele deve desculpas à magistratura em geral, porque atitudes como a dele mancham a classe.
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